
O Phisics Day juntou na quinta feira projetos de doutoramento e algumas das maiores empresas a operar em Portugal
Beatriz Antunes tem dois anos para revelar o potencial de um biochip que deteta indícios de doenças a partir da urina que passa por uma sanita. Já Nuno Gonçalves está apostado em criar uma máquina comparável a uma fábrica de arco-íris. Em contrapartida, João Mendes quer criar Inteligência Artificial (IA) que é capaz de prever, com três anos de avanço, um cancro da mama. Apesar de inovações bem diferentes, os três investigadores têm dois dados em comum: são alunos de doutoramento na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (CIÊNCIAS) e fizeram parte da mostra de quase 40 projetos inovadores que foram apresentados a várias empresas de renome durante o Physics Day, organizado pelo Departamento de Física, durante esta quinta-feira.
“Tivemos aqui várias empresas que mostraram interesse em abrir estágios e programas de intercâmbio com alunos de CIÊNCIAS”, explica Nuno Araújo, presidente do Departamento de Física de CIÊNCIAS. “Um profissional que é treinado para lidar com problemas que vão das partículas subatómicas ao espaço será possivelmente das pessoas mais preparadas para encontrar soluções para problemas complexos”, acrescenta o professor de CIÊNCIAS.
Além de alunos e investigadores da área da física, o evento contou com palestras de representantes da Renova, da Amorim Cork, da Renova, dos CTT, da Critical Techworks, da Galp, da Microsoft, da Hovione, da Complear, da Mercedes Benz IO e da ThyssenKrupp. No palco, as atenções iam saltando entre ciência e negócio, mas no evento ninguém escondeu que o principal objetivo passava mesmo por conhecer e ser conhecido. O que pode ser o primeiro passo para a captação de profissionais acabados de formar, como confirma Paulo Pereira da Silva, diretor executivo da Renova.
“Vim aqui mais para olhar para talentos do que para projetos”, sublinha o gestor da Renova, sem deixar de puxar pela área científica em que se formou. “Um físico tem uma formação que permite resolver problemas com uma estrutura mental muito segura, muito forte e potente”, acrescenta.
Mesmo para quem anda à “caça” de novos talentos, os temas de doutoramento apresentados no Physics Day não passam despercebidos. Até porque boa parte deles resulta de um misto de arrojo e capacidade técnica. “No caso de haver uma aplicação prática (que saia do doutoramento) abre-se a possibilidade de gerar uma mais-valia para empresas que estão a desenvolver terapias para o cancro”, explica Rafael Almada, aluno de doutoramento que tem vindo a investigar novas terapias que facilitam a cicatrização de pequenas feridas que, eventualmente, podem evoluir para cancros. “É preciso não esquecer que o cancro é considerado um dos grandes desafios do século XXI”, acrescenta o investigador.
Luís Carriço, diretor de CIÊNCIAS, abriu o evento lembrando as oportunidades de investigação que têm origem nas necessidades das empresas e, pouco depois, foi a vez de Nuno Araújo desfazer os mitos que levam a crer que os doutoramentos de física apenas têm saída académica, quando os estudos que vêm do estrangeiro revelam que, afinal, cerca de metade desses investigadores vai trabalhar para a indústria. E há mesmo estudos que indicam que até o grau de satisfação é maior entre esses profissionais que optam por sair da investigação académica.
Ainda assim, o caminho que vai do laboratório da universidade até ao escritório empresarial também pode evidenciar contratempos de permeio. “Quando comecei a apresentar currículos, senti que não era contactado pelas empresas por ter um doutoramento, e por se assumir que implica um salário maior”, refere Nichal Gentilal, cientista do Grupo de Investigação e Desenvolvimento da farmacêutica Hovione.
A rejeição de doutorados também pode ser interpretada como um sinal de falta de sofisticação de parte do tecido empresarial, mas não impede que muitos desses profissionais acabem por facilmente encontrar lugar no estrangeiro. E o próprio Nichal Gentilal admite que, mesmo dentro de portas, já se notam mudanças e há cada vez maior disponibilidade para investir em quem desenvolve o espírito científico. “A Hovione interessa-se mais em pessoas que sabem pensar e resolver problemas e que são autónomas para ir atrás das soluções. E isto porque a parte teórica e de leitura qualquer pessoa consegue recuperar se for preciso”, acrescenta
Na indústria automóvel a lógica não é muito diferente. "Se olharmos para o sector automóvel vemos que a aerodinâmica é sempre tomada em consideração. Além disso, é necessário desenvolver protótipos, peças e ferramentas... e sim, sem dúvida que há uma correspondência entre o que procuramos e os perfis típicos de quem se formou em física", responde Ana Margarida Nunes, responsável de recursos humanos da unidade de negócio para a áreas de soluções corporais e automóveis da Thyssen Krup em Portugal.
Perante o apelo empresarias que ecoou durante o Physics Day, Catarina Pelicano não esconde a expectativa sobre o que se segue depois dos estudos. “Estou a pensar ir trabalhar para a indústria, depois do doutoramento. Este Physics Day foi muito bom para saber o que andam as empresas a fazer” refere a aluna de doutoramento que tem vindo a trabalhar no desenvolvimento de diagnósticos clínicos com base em micro-ondas. “Já dei o meu contributo para esta linha de investigação que tem sido levada a cabo em CIÊNCIAS. Está a chegar a hora de sair da minha zona de conforto, que neste caso ainda é a academia”, admite a jovem investigadora.
É essa busca de alternativas fora da academia que Carlos Fernandes Bhatt, responsável pela gestão de Inovação dos CTT, não pretende desperdiçar: “A presença dos CTT no evento Physics Day enquadra-se na nossa estratégia de proximidade e interação com o ecossistema de inovação, que integra universidades, centros de investigação, startups e outros parceiros industriais e tecnológicos. Estamos convictos de que, em conjunto, podemos enfrentar desafios complexos de uma forma ágil e multidisciplinar, potenciando sinergias e promovendo inovação sustentável”, refere o gestor dos CTT.
Não será de estranhar que quem vem de visita à universidade acabe por ter uma zona de conforto diametralmente oposta à de um doutorando. “Vim aqui mais para aprender e colocar desafios do que para dar respostas”, informa Luís Cabrita, técnico de Departamento de Investigação e Desenvolvimento da Amorim Cork. “Além de ter aprendido coisas novas, levo daqui ideias para pensar que, eventualmente, poderão encontrar aplicação no mundo da cortiça”, acrescenta.
Na física, as aplicações nem sempre são óbvias ou fáceis de descortinar. Sendo aluno de doutoramento de CIÊNCIAS, Tiago Gonçalves também sabe que há sempre o risco de se converter, inesperadamente, num alvo da incompreensão alheia quando explica que está a desenvolver uma teoria modificada da gravidade, que poderá apontar novos caminhos para a forma como funciona o universo, ao mesmo tempo que apresenta soluções alternativas que, eventualmente, não chegaram a ser sequer previstas por alguns gigantes da física.
“Sei que trabalho com ciência fundamental, mas não me sinto deslocado face a outros projetos com objetivos mais concretos. Tenho vindo a trabalhar com computadores que simulam dinâmicas complexas. E esse conhecimento tanto pode ser aplicado ao universo como a um problema da vida real”, refere o doutorando de CIÊNCIAS.
O ciclo está há muito definido: Dos problemas da vida real nascem negócios. E de viveiros de ideias como CIÊNCIAS irrompem tendências e soluções tecnológicas para os diferentes problemas. “Por vezes precisamos de conhecer melhor o contexto para poder atuar e saber para onde devemos ir. Para isso é preciso saber o que pensam as pessoas e como é que usam as tecnologias. É assim que nos confrontamos com a realidade”, responde Daniel Buzzini Thielsch, responsável pela engenharia da Mercedes Benz IO.
João Casacão, gestor de projetos de inovação relacionados com a extração e produção de petróleo da Galp, também não esconde que foi ao Physics Day para estabelecer, mais uma vez, a virtuosa ligação entre necessidade e engenho, sem perder a expectativa de inspirar alguns doutorandos a desenvolverem soluções valorizadas pelo sector petrolífero.
“Há várias correspondências possíveis (entre vagas de trabalho e pessoas formadas em física) tanto na parte mais técnico-científica, como na engenharia de processos e nos conhecimentos relacionados com temperaturas e pressões altas, vibrações, testes de erosão… enfim, tudo aquilo que as tecnologias têm de garantir para serem qualificadas e um operador do sector petrolífero as possa contratar”, responde o representante da Galp. “Mas também conheço vários colegas que vieram de física, e são físicos por natureza, mas estão a trabalhar em áreas mais ligada à gestão do negócio”. O conhecimento é o limite.