Margarida Gama Carvalho com o Avô, o professor Rómulo de Carvalho.
Uma só Cultura
As visitas do Avô (ou ao Avô), envolviam sempre livros a trocar de mãos. De forma discreta, oferecia um trabalho acabado de editar ou, na ausência de novidades, aquele que por fim parecia adequado à idade da neta. Era um ritual esperado e inevitável. Havia os livros do Avô Rómulo, que mostravam como, desde tempos imemoriais, a humanidade se interroga para compreender o mundo e decifrar regras e padrões – úteis ou, por vezes, apenas satisfatórios. Do “Embalsamamento Egípcio” 1 aos “Cadernos de Iniciação Científica” 2, era posto em evidência o poder da abordagem científica para construir e validar conhecimento, ou desmontar intuições sobre os fenómenos naturais, revelando que é possível, e belo, explicar racionalmente a realidade.
Depois havia os livros do “Avô Disfarçado”, o Gedeão, em que palavras e sentimentos se entrelaçavam na exploração do universo dos possíveis e imagináveis. Ali, exorcizavam-se angústias e a beleza de existir. Uma beleza que, como cedo aprendi com ele, nasce tanto do espanto de ser humano neste mundo quanto da poesia de compreender os seus fenómenos com rigor científico. Porque, como ensinava Gedeão, apenas enriquece e em nada diminui a beleza do luar saber que “se a Lua não se movesse, se estivesse ali parada, qualquer forma que tivesse, não se mudaria em nada” 3.
Tal como os livros, as conversas que recheavam essas visitas olhavam o mundo com espanto, humor, e uma grande dose de ironia. Faziam da pergunta, do conhecimento e da interpretação rigorosa dos factos uma forma de estar. Com o Avô Rómulo/Gedeão aprendi que Ciências e Humanidades não são duas culturas separadas, mas uma só, que nasce do desejo humano de compreender o seu lugar no universo. Uma explora o que é; a outra, o que poderia ser. Uma intuitiva e emocional; a outra requerendo método e autodisciplina, frequentemente desafiando os sentidos, o que a torna exigente. E é na confluência de ambas que se constrói a realidade a que aspiramos.
Por tudo isto, sempre me surpreenderam os discursos que colocam a Ciência e os cientistas num campo à parte da “outra” Cultura. Mas reconheço que a forma menos intuitiva e mais laboriosa como a Ciência se constrói exige um esforço ativo para explicar o processo que a sustenta – mais importante até do que divulgar o conhecimento que já produziu. Só assim se pode conquistar a confiança necessária para que a Ciência assuma o seu devido lugar na construção da realidade que queremos partilhar. Até chegarmos aí, celebremos ativamente a Semana e o Dia Nacional da Cultura Científica para que estejamos cada vez mais perto de uma só Cultura.
Margarida Gama Carvalho
24 de novembro de 2024
1 Rómulo de Carvalho. O Embalsamamento Egípcio. Editora Cosmos, 1948 (1.ª edição)
2 Rómulo de Carvalho. A descoberta do Mundo Físico. Cadernos de Iniciação Científica I. Editora Sá da Costa, 1979 (1.ª edição)
3 in António Gedeão. História Breve da Lua. Editora Sá da Costa, 1981 (1.ª edição)
O Dia Nacional da Cultura Científica comemora-se, em Portugal, no dia 24 de novembro em homenagem ao professor, poeta e divulgador de ciência Rómulo de Carvalho / António Gedeão, que nasceu nesta data. É um marco significativo que celebra a riqueza e importância do conhecimento científico na sociedade. Foi estabelecido em 1996, tendo a celebração da cultura científica sido alargada a uma semana no ano seguinte. Esta celebração destaca o papel crucial que a ciência desempenha na formação de mentalidade, no progresso tecnológico e no desenvolvimento sustentável do país.