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Galopim de Carvalho, antigo professor de CIÊNCIAS, lançou três livros: “Realmente, ando por caminhos de pedra solta”

Galopim de Carvalho

Galopim de Carvalho acaba de lançar a biografia da esposa Isabel Fialho

DCI-CIÊNCIAS

Galopim de Carvalho fez carreira como professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências ULisboa) e diretor do Museu de História Natural e das Ciências (MUHNAC), mas hoje tem um novo ofício que o leva a acordar todas as madrugadas. “Gosto que me chamem escritor porque escrevo com muito amor”, informa o antigo investigador da área da geologia que hoje conta com 94 anos de idade.

Pouco antes do Natal, o amor pela escrita revelou-se novamente com o lançamento dos três livros (editora Âncora) numa sessão realizada no MUHNAC pouco antes do Natal. Entre os livros recém-lançados, encontra-se “A Professora”, que traça uma biografia à esposa Isabel Fialho desde os tempos de criança até à atualidade, e há ainda lugar para a reedição de “Os Homens Não Tapam as Orelhas” e para uma compilação de textos publicados nas redes sociais com o título de “Por Caminhos de Pedra Solta”. Quem julgar que as publicações se ficam por aqui que se desengane: Galopim de Carvalho faz questão de escrever todos os dias desde 2016. “Há dois livros que já estão feitos. Já os mandei para a editora”, refere o conhecido professor de Ciências ULisboa, em entrevista.

Onde é que foi arranjar genica para lançar três livros de uma assentada?

O livro “Os Homens Não Tapam as Orelhas” é uma reedição de um livro que publiquei há 28 anos. Portanto, esse estava feito. O outro, que tem o título “Por Caminhos de Pedra Solta” tem uma história muito engraçada. A certa altura, os meus leitores do Facebook começaram a dizer: “porque é que o senhor não publica um livro com esses textos (que vai publicando Facebook)?”. Todos os dias ponho um texto no Facebook. E então comecei a fazer uma seleção daqueles que mais gostava e que entendia que me eram mais queridos. Reuni um número de textos tão grande, que deu para três livros! Em 2024, editei o primeiro, intitulado “Ao Romper da Aurora”. Passado pouco tempo, a editora somou mais uns quantos textos, e fez o segundo livro. E este ano reuniu outro conjunto de textos (que resultou no “Por Caminhos de Pedra Solta”).


Cerimónia de lançamento dos três novos livros de Galopim de Carvalho no Museu de História Natural e das Ciências - MUHNAC 

E porque é que escolheu o título “Por Caminhos de Pedra Solta” para esse terceiro livro?

O título “Ao Romper da Aurora” deve-se ao facto de escrever de madrugada. Eu levanto-me muito cedo, e vejo o nascer o sol. Portanto, pus esse título porque todos os textos foram escritos ao romper da aurora. E assim ficou. O segundo (com compilações de textos publicados no Facebook), que tem o título “Aprender a gostar de saber” está relacionado com o facto de os leitores me dizerem muitas vezes que não gostavam nada de geologia e depois de ler os meus textos passarem a gostar. Ou diziam que não gostavam de minerais, e agora já gostam. Portanto, houve quem aprendesse a gostar de saber das coisas. E daí o título do segundo livro. No terceiro, não sabia que título haveria de pôr. E perguntei (no Facebook) que nome haveria de dar ao terceiro livro. Várias pessoas responderam. E a resposta que mais gostei foi “Por caminhos de Pedra Solta”, porque realmente eu ando por caminhos de pedra solta.

E anda também pelas redes sociais… Nunca teve interações desagradáveis com os utilizadores de redes sociais?

Às vezes, quando me meto na política, levo muita pancada!

E aguenta-se, professor?

Quando a “pancada” é dita de uma maneira séria e respeitosa, eu deixo (prosseguir com o diálogo). E às vezes até recomendo. Mas quando é malcriada ou estúpida… Já limpei essa malta toda (da lista de subscritores da conta pessoal). De vez em quando bloqueio-os. Digamos que eu navego numa certa orientação. Quem está muito à direita e não gosta daquilo que eu escrevi e comenta. Pode comentar com respeito, e tem todo o direito. Mas se me ofender, eu corto. Se alguém à esquerda não concorda e também me quer ofender, eu corto. Ainda hoje “cortei” um!

E tem conseguido manter a rotina diária da escrita?

Desde de 2016 que escrevo todas as manhãs.

Não precisa de nenhum motivo especial para escrever?

Hoje escrevi sobre uma sopa.

Sobre a receita dessa sopa?

Sim, uma receita. Já vou para o terceiro livro de receitas…

Quantos livros é que já publicou?

Nesta editora (Âncora) foram 26. Há outros noutras editoras, mas são poucos.

"A Isabel tem uma carreira como professora do ensino primário que entendi que deveria ser escrita. Tentei passar para livro toda essa vida e sobre a relação que tem comigo desde criança" 

E ainda não falámos de “A professora”, que também acaba de ser lançado e tem por protagonista a sua esposa, Isabel Fialho. Pela sinopse fica a ideia de que o livro é também uma carta de amor.

Sim. Estamos juntos há tantos anos e continuamos numa espécie de namoro! A Isabel tem uma carreira como professora do ensino primário que entendi que deveria ser escrita. Tentei passar para livro toda essa vida e sobre a relação que tem comigo desde criança – porque nós já nos conhecemos desde crianças – até ao presente. E foi rápido de fazer. Esse livro foi escrito este ano, enquanto nos outros dois há uma reedição e uma reunião de textos que já estavam escritos.

Portanto, “A Professora” é uma biografia…

É mesmo uma biografia, sim.

E a sua esposa, o que disse?

Ela lê tudo o que eu escrevo. Às vezes emenda a sintaxe.

Costuma ser assim com as professoras do ensino primário…

Só não emenda eventuais erros de ortografia porque o computador já não deixa escrever com erros (risos).

E acompanha a história da sua esposa, já enquadrada na família Galopim de Carvalho, até aos dias de hoje?

A minha esposa chama-se Isabel Fialho! Não tem os meus apelidos. Naquela altura – e estou a falar de 1950 e qualquer coisa – as professoras, para casarem, tinham que ter a autorização (do ministro da educação do regime ditatorial do Estado Novo). Por outro lado, para ter o meu nome implicava também autorização. A Isabel entendeu que não tinha de o fazer, uma vez que já tinha pedido a autorização para casar. Esse livro começa de forma muito engraçada; começa no dia 20 de novembro de 1931. A Isabel tinha nascido na véspera. E no dia 20 de novembro, a avó Josefina, que era avó da minha mulher, encontrou a minha avó Isabel no Mercado, em Évora. Eram pessoas que se encontravam, e se tratavam por “comadre Isabel” e “comadre Josefina”. E a avó Josefina disse para a minha avó: “já lá tenho uma menina para o seu netinho”. Eu tinha nascido três meses antes…

É caso para dizer que as duas avós sabiam bem o que estavam a fazer!

As voltas que o mundo dá!

Fez carreira na geologia e no Museu de História Natural e das Ciências… e nunca lhe passou pela cabeça ter seguido a carreira de romancista?

Não. Foi um acaso (a publicação de livros). Para nos situarmos, foi ali por volta da primeira exposição dos dinossáurios (no MUHNAC), por volta de 1992. Uma autora brasileira, a mulher do Jorge Amado, a Zélia Gattai, escreveu um livro que comprei e gostei de ler. O livro conta histórias dos italianos em São Paulo… da mãe, dos avós, etc.. Histórias muito interessantes, de uma maneira muito simples, cativante. Eu já tinha escrito muito sobre geologia; fartei-me de escrever artigos, comunicações, teses de doutoramento, etc.. Portanto, já tinha o hábito… Naquela altura, escrevia-se com caneta ou lápis, mas eu já tinha a prática de escrever, ainda que nunca me tenha interessado pela ficção. Li aquele livro (da Zélia Gattai), gostei tanto, e lembrei-me que eu também tenho histórias tão giras, tão interessantes da minha infância e da minha adolescência… então vou passá-las para livro, vou escrevê-las! E escrevi então o primeiro livro, chamado “O Cheiro da Madeira”, que é a história da minha infância e da minha adolescência. Na minha infância levei muita pancada na escola, com reguadas. Havia professores que eram maus… Houve duas pessoas que me incentivaram a publicar o livro: o (filósofo) Agostinho da Silva e o (escritor) Vergílio Ferreira. Mas encontrar uma editora era muito difícil. Não conseguia.

Essa recusa devia-se a questões estéticas ou políticas?

Os editores querem ganhar dinheiro… aparece lá uma pessoa que não sabem quem é e que escreveu umas coisas sobre a infância, e não vão querer publicar porque fica para aí feito mono e não vende. Os editores querem autores que vendem. Eu hoje vendo, mas naquela altura não vendia. E o Vergílio Ferreira gostou muito do livro e quis editar na editora dele, mas depois disse-me que eles não queriam aquilo, e disse-me para não pôr “Reguadas, Orelhões e Orelhadas” que era o primeiro título que tinha pensado para o livro. Porquê “O Cheiro da Madeira”? Porque uma das histórias resulta da minha aventura numa carpintaria enquanto criança. Fiquei com o cheiro da madeira cortada, serrada, conhece o cheiro? O cheiro de pinho… E disse para mudar o título.

Agostinho da Silva e Vergílio Ferreira... Teve uns belos padrinhos na literatura!

E ainda o Lyon de Castro (Responsável pela editora Europa América). Ele também me disse: “eu não te edito isto porque... Não vai vender”.

Então como é que conseguiu editar o primeiro livro?

Mandei aquela história (de “O Cheiro da Madeira”) para a Câmara Municipal de Évora, a pedir apoio para a edição. E eles disseram que sim.

Foi apenas o primeiro livro… depois vieram “Os Homens Não Tapam as Orelhas”, e até publicou um primeiro romance, com o título “O Preço da Borrega”, e ainda “Dinossáurios e a Batalha de Carenque”!

Mas eu era um animal a escrever! Escrevia muito.

Mas voltemos ao livro “A Professora”. Levou quanto tempo a escrever esse livro?

Deve ter durado meio ano, talvez.

Sempre a acordar de manhã para escrever?

Como escrevo há muitos anos, tenho muitos textos e fui buscar alguns desses textos que estão relacionados com ela e comigo. Fiz uma compilação. Hoje é muito fácil. Se me pedir para fazer uma coisa qualquer, vou ao meu ficheiro e vejo que já escrevi sobre isso.


Galopim de Carvalho já está a preparar a edição de mais um livro de culinária - DCI- Ciências

 

Tem mais algum projeto em mente?

Há dois livros que já estão feitos. Já os mandei para a editora. Mas ainda não estão revistos. E precisarão de uns adornos. Disse-lhes que se me acontecer alguma coisa que façam o que quiserem. Se não acontecer nada, volto a pegar nos livros, para uniformizar, polir e etc..

"Toda a vida trabalhei no laboratório e quando estou na cozinha quase sinto estar no laboratório. Mexo na água, mexo na torneira, mexo no forno, etc.."

Que livros são esses?

Um é um terceiro livro de cozinha, sobre as muitas receitas que eu tenho. Eu gosto de cozinhar e faço inovação na cozinha. E o livro vai chamar-se “Do Laboratório à Cozinha”. Porque eu fui investigador no Laboratório de Sedimentologia. Toda a vida mexi com copos, com frascos, com água, com água destilada, com ácido, etc.. Isso é muito parecido com a atividade da cozinha. A gente corta, põe sal, vinagre, etc.. Aquele vício do laboratório permitiu encontrar alguma compensação na cozinha depois de sair do laboratório... Toda a vida trabalhei no laboratório e quando estou na cozinha quase sinto estar no laboratório. Mexo na água, mexo na torneira, mexo no forno, etc.. E isso veio à memória e por isso pus o título “Do Laboratório à Cozinha”. O outro livro demorou muitos anos a escrever… reunindo, reunindo, reunindo (textos) e deixei-o pronto no final do ano passado. Tem o título de “Nós e as Pedras”. É sobre toda a relação que nós temos com aquilo que nos rodeia, com as pedras, com os minerais, com as rochas. Tudo o que está à nossa volta tem relação com as rochas. Tudo! Até a roupa que nós estamos a vestir… os telemóveis, o papel, o cimento, o vidro, tudo, tudo!

Tendo em conta tudo o que acabou de nos contar, resta perguntar: já sabemos do seu passado na ciência, mas será que devemos também a apresentá-lo como escritor?

Eu gosto que me chamem escritor, porque eu escrevo com muito amor. Fui cientista, mas atualmente, já não sou. Quando escrevo sobre geologia, já não estou a inovar. Já não estou a ensinar a ninguém coisas novas. (No passado) Fiz livros em que avancei na ciência, com aquilo que fui descobrindo e a matéria que fui ensinando. Hoje, quando escrevo de geologia, é de memória. A geologia, nestes 25 anos que passaram desde que me jubilei, deu um pulo em frente. Eu já estou desatualizado. Mas já não me interessa nada essa atualização. Agora há que dar lugar dos novos.

Hugo Séneca
hugoseneca@ciencias.ulisboa.pt